O relato de hoje não é baseado em nenhuma historia que me contaram, não foi papo de bar e não foi consulta de nenhum paciente. Hoje eu vou falar sobre algo pessoal, algo que estou lutando e aprendendo a viver.
Em 2018 minha mãe foi diagnosticada com câncer de mama, meu pai, casado com ela há quase 50 ano na época, começou a apresentar uma certa confusão mental, bem delicada, bem sutil. Mas era bem esperado, ele estava com a esposa, amor da sua vida, entrando numa cirurgia que durou quase 10 horas, e estava com ela na odisseia de ir em médicos. Tudo difícil, do começo ao fim, como é uma batalha contra o câncer. Eu assumi a frente no papel que talvez tenha me mostrado que eu cresci, que não era mais uma menina quando decidia pelos médicos e qual cirurgia ela iria fazer, qual prótese colocaria, se colocaria. Nem quando me tornei mãe dos meus dois filhos eu me senti tão adulta como quando tive que cuidar da saúde da minha mãe.
Tem algo muito duro no envelhecer dos pais, nós filhos continuamos sendo filhos mas temos que tomar algumas decisões por eles. Eles que sempre decidiram a escola onde estudaríamos, o lugar que passaríamos as férias escolares, a janta e o nosso plano de saúde. Olhe, eu saí de casa bem nova, aos 19 fui para o velho continente passar um tempinho, quando voltei não consegui mais me encaixar na casa dos meus pais, eu estava acostumada a cuidar de mim mesma, não estava era pronta para decidir o que fazer com os peitos da minha mãe. Mas decidi, e foi tudo bem, ela se saiu muito bem, quando voltou da cirurgia eu estava lá, e passei a noite acordada com ela, mas ela se preocupava se eu estava acordada ou dormindo, se eu estava com frio ou calor, ela que tinha passado por quase 10 horas de cirurgia estava ainda ali como mãe.
Lembro bem desse dia, do meu pai confuso com a ida da minha mãe para a cirurgia e eu perguntando a um tio o que ele achava e ele me dizia: "ele está nervoso, não é nada". Depois disso ele foi esquecendo uma coisa aqui outra ali, esquecia as chaves, esquecia nome de alguns conhecidos. Viajamos, eu, ele, meus filhos, minha mãe e meu sobrinho mais novo, e eu senti ele confuso demais no aeroporto, para onde vai, onde fica, espera na fila...mas achávamos que era normal. Fizemos um teste para vermos como estava a cognição dele. Perdeu bastante, está confuso, mas nada demais, só uns exercícios, que ele não quis fazer. Veio a pandemia. Ele completou 80 anos, e tudo que ele fazia de melhor ele não pode mais fazer. Socializar, conversar, bater papo com estranhos, dirigir, sair por aí, livre, leve e solto. Meu pai perdeu 15 quilos, ou 20, deprimiu, não tinha interesse em tecnologias e se afastou de tudo e todos, por causa da pandemia. Daqui 3 dias ele fará 82 anos, e ao mesmo tempo que estou muito feliz em tê-lo perto de nós eu sinto uma solidão muito grande, uma saudade dele maior ainda. Um dia eu estava chorando e meu filho me perguntou o porquê do meu choro, eu disse que era pq eu sentia falta do meu pai. "Mas ele está vivo, não precisa ter saudade", eu disse que era saudade dele como sempre foi. Hoje meu pai está muito confuso, esquece de informações recentes em pouco tempo, me alegro por ele me amar como sempre me amou, por ainda eu ser a "neném do papai". Meu pai vai a nossa casa da infância e busca frutas para mim, mas sai andando por aí e nós temos que procurá-lo. Fala coisas tão absurdas e inapropriadas mas me diz que me ama e me enche de elogios. Estou aprendendo a lidar que mesmo quando a memória falha sobra o amor, sobra o carinho, sobra a lembrança de um passado não muito distante de um pai sempre presente, de um pai parceiro, de um pai que todas as minhas amigas queriam ter igual. A memória falha, o amor nunca. Obrigada, meu paizinho, por ter me dado uma infância maravilhosa, uma adolescência segura, por ter sempre levantado minha autoestima, por ter sempre acreditado em mim, por saber que eu passaria em provas que eu achava que não conseguiria, por me ensinar a trocar o pneu de carro para não depender de homem, por me ensinar a andar de bicicleta, por me ensinar a nadar, por me ensinar a levantar a cabeça depois de um chifre que tomei na adolescência, por me defender todas as milhares de vezes. Você é o melhor pai que uma menina que cresceu nos anos 80 e 90 poderia pedir. Obrigada, hoje te vejo no meu maternar, na minha forma leve de viver a maternidade, a infância e a adolescência dos meus filhos, do mesmo jeito que eu vivi, nada era tão sério assim, e vejo o lado bom sempre que posso. Te amo, obrigada, sua memória não é a mesma, sua compreensão também não, e embora seja duro, duro pra caramba, eu tenho você e vira e mexe você me mostra que nada mudou que eu ainda sou sua filha e que ainda tenho muito a aprender com você!
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